ensaio VIII - transliterações do além mar

           Caro leitor, narrarei um encontro. Um encontro único, daqueles que quando acontecem criam uma dança silenciosa e interior. Era noite, estava a caminho de casa quando aquelas palavras impressas no livreto chegaram às minhas mãos. “Leia, você vai gostar”.  Sem me deixar influenciar por tal afirmação, guardei o objeto na minha bolsa.

Em casa, repouso o livro sobre a cama. Não se espante, mas pela primeira vez na vida, tratei o objeto como um ser, sabia que aquilo não se tratava de um simples livro. Sobre a manta azulada, observo as ilustrações da capa. Aquele livreto atravessou o oceano para chegar até ali. Eu era parte daquele mar, as narrações daquele romance poetizavam e se imprimiam dentro de mim.

O que em comum eu tinha com o autor daquelas palavras? A língua. Sem traduções, sem sabermos um do outro, aquele livro nos aproximava. Dentro de mim surgia algo maior que eu não sabia explicar como e por que. Mais do que gostar, passei a caminhar naqueles traços.

A cada abrir de páginas: mais me descobria. Entre sonambulismos de uma terra, minha imaginação atravessava o tempo e o espaço das raízes, navegava em rios e mares que aquelas palavras abriam e tingiam para dentro do meu ser.

Nunca mais eu seria a mesma. As palavras tingidas naquelas folhas imprimiam dentro de mim as pegadas de uma terra, de um povo.  Quem sou eu?

Palavra, corpo, linguagem, neologismos, recriações. Nesse vagar sem fim que é a vida, fui encontrando nas narrativas de Moçambique pedaços simbólicos que decifram o enigma da minha existência.

Moçambicando os sentidos, exporto para dentro a experiência da terra escravizada. A cada leitura, resgato-ato-desato os laços com a língua materna, desatinos de outros corpos em outras terras, vou atravessando o oceano em busca de resposta e significações.

As palavras soam como tambor que me guiam e impulsionam o devir de literalizar a experiência de ser.

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