Os palcos-bailados da rua

Domingo, 20 h.
Cansado de refletir sobre a ausência de políticas públicas culturais e de tecer reflexões sobre os artistas urbanos, vou ao espaço da cultura projetado por Niemeyer.
Hall do Centro Cultural São Paulo.
Um aglomerado de gente chama a atenção dos que seguem em direção à bilheteria. Pego meus ingressos e me infiltro na multidão.No papel verde os dizeres: "Deixe aqui sua contribuição monetária e ajude a garantir minha sobrevivência. EM TROCA FAREI UMA LINDA DANÇA DIANTE DE VOCÊ".
Entre as roupas espalhadas no chão, ao som de Cazuza e Bebel Gilberto, o bailarino faz a sua dança-declaração de amor. No fundo um aparelho de televisão e vídeo cobertos pelo pano preto. As fitas adesivas transparentes delimitam o palco do artista, criando algo semelhante a uma arena ou a um ringue, uma cadeira vazia e dois pratos brancos compõem o cenário.
Com a respiração falha, com o rosto vermelho, o artista cria poças de água no chão encerado, por ora levemente suado. Ele pára e assiste aqueles que o assiste. Tímida uma senhora levanta e coloca sobre um dos pratos de cerâmica algumas moedas, o bailarino agradece e em seu notebook ele seleciona a próxima canção a ser dançada.
Vale lembrar que o crescimento econômico do país tem possibilitado que todos tenham acesso à informática. Agora todos, inclusive os artistas de rua, podem ter um laptop. Viva o PAC - Plano de Aceleração do Crescimento, viva! Viva as 'casas do baiano' que deixa o povo parcelar em vinte e quatro vezes o computador a juros zero, viva!
Ao som de Like a Virgen o menino dança. No meio do palco-ringue improvisado o público sentado no chão acompanha seus movimentos e a música, mas no contraste das multidões uns passam pelo espaço e outros fingem que não vêem.Os comentários variados me chamam a atenção, uns dizem que estamos parecidos com a Europa e seus artistas de ruas, mas poucos se lembram que o artista brasileiro na falta de alternativa e políticas que o privilegiem vê nas calçadas, pátios, corredores, escadarias e espaço públicos variados para garantir o seu sustento.
Se o poeta diz "o artista vai onde o povo está", lá está ele o jovem bailarino que para um público seleto desenha no espaço em movimentos (des)harmônicos ocupa o tempo daqueles que esperam o início do espetáculo.Olho em seus olhos e penso: será que ele se alimentou hoje?
No mesmo instante uma jovem bonita levanta-se, sussurra ao pé do ouvido do bailarino, lhe oferece uma bala e ele lhe oferece uma dança. Ela o acompanha com olhos sorridentes e ele a contempla com seus movimentos de gratidão.
Me dirigjo ao jovem que está ao meu lado, sou informado de que já está na hora do meu segundo espetáculo. Levanto-me e sem colocar uma moeda me retiro da multidão. Entro na fila, desço as escadas, entrego meu ingresso e sento-me nas cadeiras confortáveis da Sala Jardel Filho.
Por um instante pergunto-me: quem foi mesmo Jardel Filho? Não sei a resposta e também não sei o nome do bailarino, lá de fora. As luzes do teatro se apagam, ouço as orientações de emergência, os três sinais e começa o espetáculo-dança.
Fim do espetáculo o público de dentro, que também era o de lá de fora, aplaude exaustivamente os bailarinos do palco. Mais uma vez me lembro-me que não aplaudi o bailarino lá de fora. Ao sair do teatro, meus olhos atravessam a parede de vidro: ele não está mais lá, o cenário-ringue de sua sobrevivência fora desmontado.

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